Wednesday, May 30, 2007

exaustão particular

Não consigo lembrar o meu nome. Imagino que ele esteja em algum lugar. Pés suados e o mau cheiro que isso causa é o mais perto de estar em casa que eu encontro em mim.
Também não trago documentos que comprovem que eu existo.
Não consigo segurar nenhuma expressão no rosto. Desconforto ou alegria, irritação ou tranquilidade, tudo isso repuxa músculos faciais que simplesmente não tenho energia pra acessar.
Respiro pouco. O pulmão quando sobe e desce rouba a capacidade dos olhos de ficarem abertos.
Atentos eles já não estão. Há uma exaustão em se fixar, por isso eles miram tudo. Miram o lá trás. Miram nada. Estão abertos, mas não há o que ver.
É mais do que sono.
É não ter onde chegar.

Tuesday, May 22, 2007

tóbi lupe

tovar
saiu cambaleando do buteco, tropeçando nos restos de aperitivo jogados pra fora da porta e desviando do próprio sangue,
(deixou derramar em tóbi lupe, o gato branco do dono, que ficou na escadinha se lambendo e ficando rosado com a desgraça alheia)
Tovar pôs a mão no buraco
na verdade uma boceta talhada nas tripas
lamentou a camisa que custou duas semanas de salário
e mais noventa centavos emprestados.
Agora, já nem adianta a cerveja. Ela vazará.
De dentro de si, tira um cigarro, duas moedas e uma flor de papel crepom (tudo embrulhado em plásticos, pra não ser digerido pelos ácidos estomacais irritados de Tovar)
quem plantou isso
foi uma velha que quando ele tinha cinco anos fingia que ele era seu neto
porque ela não era avó de ninguém.
Ela então lhe dizia, isso é pra você morrer nem rico nem pobre, só suficiente.
Suficiente as vezes quer dizer sem ninguém.
Escorado na parede,
a seus pés o gato tóbi lupe implorando que ele morra e caia logo pra que possa se alimentar,
tovar abre o saco, acende o cigarro e fica vendo o sol se por.
amarelo é uma cor que muda de sentido quando você mata um homem por causa de dívida de jogo
e depois espera a propria morte com calma.
tovar só queria que doesse pelo menos.
mais do que a camisa perdida, mais do que a cerveja desperdiçada.
ele queria que doesse na carne
porque não teve tempo de se apaixonar.
tovar cai depois que suspira.
o gato funga o resto do cigarro aceso.
acha fedido e o odeia.
depois bebe o morto, sanguinho como se fosse o leite que sempre mereceu.

Thursday, May 17, 2007

Poli Ana

Eu nunca te amei muito. Comprei uma vodka, duas caixas de analgésico e um tubo de cola de sapateiro por que eu nunca te amei direito.
Perambulei pelas ruas comprando briga esperando bater em alguém, porque, porra, eu nunca te amei.
Com um martelo esmago a ponta dos dedos cantando baixinho pra ninar a dor de mim mesmo, porque eu nunca gostei muito de ti.
Todas as janelas ao meu redor parecem órbitas vazias, porque eu nem mesmo te gostei.
Sem roupa em frente a geladeira, quero uma pneumonia porque jamais prestei atenção em tudo que vc faz.
Fecho as cortinas, corto meu cabelo, sem cuidado nem dó arranco um escalpo inteiro, com uma faca de cozinha removo meu cérebro pra te esquecer porque eu nunca nem te vi.
Me descontrolo e perco toda a água que tenho no corpo chorando, porque as minhas células não estão contaminadas contigo.
Seca, abro com os dentes um buraco no sofá, que tem o teu tamanho, lá me escondo e espero a casa inteira incendiar.
Porque tudo tem o teu tamanho.
Porque eu nunca te amei demais.

eu tinha só um naquinho de coração
você usou pra fazer patê
ainda passou limão no buraco.

era só um pedaço de carne bordô
entre os pulmões
um mundo perdido e castigado
voce derramou oleo fervente
e depois tirou retrato

era um quase nada de mim que prestava
mas era meu e não emprestado
eu te dei. voce me castigou a prazo.
eu te dei. voce jogou pro diabo
em mim ele limpou os pés
e ensinou sobre a vingança
e distribuir o que ficou amargo.

Tuesday, May 15, 2007

Quanto mais eu conheço as pessoas mais eu gosto dos psicopatas no papel
As vezes choro alguma coisa que sai da medula

Wednesday, May 09, 2007

olhos pra cima, ao fundo

"She dont use jelly
Or any of these
She uses vaseline" flaming lips

diego acordou.
a primeira coisa que pensou, junto com abrir os olhos, foi "porque eu ainda abro os olhos?"
já de pé, na frente do pedaço quebrado de espelho sobre a pia da cozinha,
-porra, de manhã... porque eu ainda abro os olhos?
Isso podia parar. Isso devia parar. Abrir os olhos todos os dias de manhã no que sobrou de uma escola massacrada.
Em 1995 o pastor local, Gustaf Ollork perdeu o freio da razão e metralhou uma sala de aula cheia de pessoinhas de 10 anos de idade. Antes de começar a atirar ele falava às crianças sobre esperança, e ao violão, cantou com elas umas duas canções, versões próprias de musicas do rádio que ele usava pra ensinar moral e bons costumes.
Contam que enquanto atirava, seu cabelo foi ficando ruivo, depois vermelho, depois caiu.
Talvez fosse uma peruca mágica,
talvez o diabo tenha tomado aquele corpo, talvez tenha havido uma fogueira na cabeça de Gustaf, ninguém sabe. O certo é que depois de matar 25 crianças, ele saiu de dentro da escola careca, coberto de sangue, com a metralhadora quente e vazia numa das mãos e, com a outra mão, vinha arrastando pelo pé o corpinho frio e carnudo de Gini, uma gorducha tranquila e doce que sempre usava xadrez.
Na porta, segurando a arma e a carne, ele gritou
"eu só estava caçando o almoço".

Diego sempre odeia o próprio café. Fazer café é como fritar um ovo ou fazer arroz. Parece muito fácil e simples se voce for uma dessas pessoas que acerta o ponto. Se não tiver esse dom, nunca vai aprender. E estará fadado a café queimado e ruim, arroz cru e empapado e ovo frito despedaçado pra sempre.

O irmãozinho de Diego estudava naquela 4ª série há duas semanas quando a merda aconteceu. Como era franzino e tímido sentava bem no fundo, num canto, um lugar onde pudesse sempre passar despercebido e imune ao mundo. Foi o único sobrevivente da turma. Ficou só com um braço esmigalhado. Diego pensava que seria ainda mais difícil pro irmão arranjar namorada agora, além de tímido, sem um braço, e que o pequeno certamente acabaria por pressão das circunstãncias virando gay. O que não aconteceu. Depois de dois anos de pesadelos, fantasmas e anorexia nervosa, o menino então com 12 anos, órbitas fundas e 15 quilos se enforcou nos fundos da escola.
diego tinha uns 18 anos então.
não queria virar gay nem ter uma namorada. não quis mais ir pra faculdade, nem cortar o cabelo
nem ficar triste
nem buscar uma religião.
Não queria ter um carro, nem vícios, nem animais de estimação.
Não queria escolher que camisa vestir.
Não queria aprender a abotoar. Nem ter nada que se perca.
Diego não queria esquecer que tudo o que se tem
existe pra perder.
Quando fecharam definitivamente a escola, tres anos depois do acontecido, seu irmão já morto,
os pais já tortos e secos,
diego fechou a porta de seu quarto de rapaz começando a viver,
e entrou pelo portãozinho que rangia e tinha duas gotas vermelhas que a perícia não limpou.
Naquela época, o pátio da escola era só uma terrinha pobre, fina, poeirenta, cheia de restos de fita amarela, "não se aproxime área de crime".
Já passaram dez anos desde que ele chegou.

Hoje ele acordou e pensou, como ele pensa todas as manhãs, porra, porque eu abri os olhos.
Lavando o rosto e durante o café, ele pensou, porra, porque eu abri os olhos.
Aí ele abriu a porta e foi lá fora
no pátio que agora era um vivo mar macio de verde e vermelho
então lembrou:
ah, as papoulas.
Diego acorda todos os dias de manhã pra correr e sorrir no meio das suas papoulas.

Sunday, May 06, 2007

Felinos na beirada

-meu gato jamais se mataria.
-porque o seu cabelo está tão esquisito hoje?
Yeah, meu cabelo vinha se tornando mais esquisito a cada dia. E eu continuava fazendo tudo igual.
-não importa o cabelo. Você acredita que gatos são capazes de se suicidar?
-veja bem, eles tem vivido tão próximos da gente...tem copiado tudo, e ainda, digamos assim, refinado um pouco as coisas.
-olha, meu gato pode ter sido assassinado, mas ele jamais se mataria.
- você não quer aceitar que talvez ele fosse infeliz. Mas mesmo não sendo infeliz, ainda lhe restaria a loucura...quem garante que os animais não nascem...você sabe, com problemas na cabeça... ou talvez eles adquirem problemas na cabeça.
Quem tem certeza de alguma coisa hoje em dia hein?
-sabe, meu gato não se matou.
-moça, às vezes acontecem umas ondas de suicídio por aí. Sei que nos últimos dois anos, mais de vinte, e para ser sincero menos de trinta, gatos morreram em circunstâncias antinaturais por aí.
-porque você fala tão esquisito?
-eu não falo esquisito. Só fui educado de maneira especial. Meus pais eram rígidos e modernos. Ahahaha, não que eu saiba do que isso se trata, enfim, entenda-se você com o que quiser pensar sobre mim. A parte complicada disso tudo, é que o seu gato se matou, e você não concorda com a conclusão mais exatamente fechadora.
-agora você está forçando a barra, está tentando ser muito mais esquisito do que realmente é.
-hm. Ok. Logo você vai chegar a conclusão de que eu estou tentando te distrair de algo...
-éééé, pode ser que você esteja...mas se estivesse, porque me avisaria? A não ser que você já suspeitasse que eu não acreditaria se por ventura você comentasse...
-ora, até parece que eu dou ar de tão inteligente...
-talvez a sua imbecilidade seja enganosa, uma maneira de parecer ingênuo
-eu posso me sentar e te pedir um chá?
-tentando me distrair de novo?
-não, tentando tomar fôlego.
-ás vezes eu sou como um piso de concreto
-já reparei. Por isso estou tentando respirar enquanto ainda consigo.
-isso é uma piada?
-você nunca abre as cortinas?
-não. A luz faz com que as particular de poeira fiquem visíveis?
-algum tipo de obsessão com limpeza?
-não, é que as partículas ficam parecendo estrelas e mundos girando por aí, então o espaço ao meu redor fica parecendo o universo infinito, e eu lá, fico sendo... como deus, no meio das estrelas.
-você não gosta de se sentir deus no meio das estrelas?
-me super excita. Fica difícil voltar a ser real depois disso.
-acho que entendo. Faz muito bem em manter as cortinas fechadas.
-você gosta de chocolate?
-eu tentei, não deu certo.
-mm,é, eu fumei por dois meses. Experimentei umas seis marcas diferentes. Desisti.
-você já foi criança um dia.
-não por muito tempo. Só até me contarem que gostar de espinafre é coisa pra adulto.
-e o gato?
O gato morreu. O certo, é que o gato morreu.

Saturday, May 05, 2007

exercício

-é a primeira vez que eu faço isso
-preferia que você não tivesse começado assim gatinha...que merda, quem disse que eu me interessava?
-qual o problema chapa?
-o problema? O problema é que antes eu só desconfiava que você é amadora e não sabe o que fazer. Agora eu tenho certeza. Não só que você é uma amadora, mas também que é incapaz de arcar com as conseqüências disso.
-do que você está falando?
-você está me avisando que é a sua primeira vez pra que eu nem me frustre se você falhar. Pra que eu já espere que você não seja perfeita. Ainda por cima, fazendo isso, de certa maneira você acha que está me manipulando...que pode me manipular...é irritante. Faz até com que você fique feia sabia garota? Aliás, desde que você chegou aqui eu ainda não vi nada atraente em você...

- aliás, você não tem tetas?

-o que eu tenho, é uma joanete doendo. Esse osso me incomoda desde hoje de manhã.
È o seguinte: eu não tenho tetas, porque eu cortei as minhas, elas me incomodavam. Eram enormes, aposto que você adoraria. Mas me davam dores nas costas. Quanto ao meu “amadorismo”... eu estava tentando prometer que nada sairá errado. Tenho muita vontade de acertar de cara. E estou com o meu alvo bem aqui na minha frente. Você prefere sentir tudo ou sentir nada?

Depois de atirar bem no meio da cabeça do velho, ela lavou as mãos, ligou para que viessem limpar tudo, trocou a camiseta. Apesar de ainda ter cara de menina, a barriga já estava meio flácida e tinha duas cesarianas cavadas na pele. São duas meninas, que tão por aí, no mundo. Uma com dez, a outra com cinco. Quer saber nada delas não. Espera que tenham herdado nenhum dos seus traços, mas que pelamor, saibam se defender exatinho como ela. Ela que já atravessou pelo menos 13 infernos até ali na vida, mas chegou do outro lado. E carrega todas as marcas que já mereceu. E tem sempre mais desgraça a espera. Ela fuma um e segue.

Começou a matar com 15. Agora tem 27. Gosta de passar conversa de que é a primeira vez que está matando. Pra quase todos, dá um gostinho especial. Homens, você sabe, adoram as virgindades.

Antes de começar a matar, ela nem sabia muito sobre a morte.

Antes de começar a matar, tinha sido só uma menina meio autista, que vivia com uma parte da família numa fazenda no meio do nada. Ao seu redor não havia violência, nem muito amor, nem historias dramáticas. Nada que chamasse atenção. Pelo menos pra ela, nada além estar a campos de distancia de todo o resto importava.

Ela tem quase certeza de que antes de começar a matar, ela quase não pensava.
Talvez passasse o tempo inteiro meditando. Talvez fosse predestinada. Ou só uma grande imbecil. Em todos os casos, parece que nunca há muita diferença entre a sorte do predestinado e do imbecil.

Ela nunca gostou muito de bonecas. Ela nunca prestou muita atenção em humanos. Raramente a ponto de gostar.
Será que teria gostado das próprias filhas? Será que elas teriam gostado dela?

Quando ela era pequena, jamais imaginou que algum dia em sua vida teria que fazer alguma coisa além de ficar atirada no meio do nada, olhando o nada, sendo o nada, sentindo o nada entrar pelas narinas e sair pelo umbigo, um nada azul e outro amarelo como asas. Um dia ela estava deitada num pasto bem longe, de olhos fechados, assim no nada. Aconteceu um estampido. O som fez um estouro de cor no meio da sua cabeça. Ela viu com os olhos de dentro o som do estampido.
Era como se ela tivesse estourado um festim na testa, na cachola.
Quando chegou em casa a tia estava limpando a arma e cuspindo no corpo do marido arrebentado no chão. Sua mãe tinha partido. Seu pai não queria mais olha pra cara dela, nem de ninguém. Foi se enforcar no quintal.
Ninguém mais queria nada que lembrasse o que tinha acontecido,
Ali
Na casa.
Ela não incomodava, mas tinha a cara.
A tia ensinou a atirar e lhe deu de presente a espingarda.

Ela nunca tinha pensado muito na vida até ali. Por isso, as coisas não eram complicadas. Sua vida era simples.
A mandaram pro mundo, com uma ultima lição e uma ferramenta.
Ela nunca temeu a morte. Nem a festejou. Ela só cumpriu ordens, como qualquer outro artesão.
Dá preferência pra encomendas de traição.
Esses casos em que um precisa que o outro morra para que o amor pare de doer.
Todo mundo que morre numa situação dessas, já sabe que vai.

Nos dias santos, não trabalha. Faxina a casa e se banha com álcool.

Alguns como esse último contrato dizem coisas ruins pra ela.
Não faz mal. Não se importa de ser feia. Se for verdade.
Hoje em dia ela só namoraria alguém que tivesse um terraço, porque precisa voltar a estar perto do céu.

Friday, May 04, 2007

carmagedon

a humanidade inventou a pedofilia.
nem o capeta teria tido uma idéia dessas.
com requintes de crueldade vindo dos mais púdicos,
cruzeiros de caça amorosa (ah, é como safári na áfrica?),
e uma sigla perversa pra amizade.
até onde eu sei, nenhuma criança nasce pedófila.
é uma opção que se aprende.
a histeria aumenta a possibilidade de conhecer a válvula de escape.
e ser machucado,
ensina onde dói
e dá pra se derramar.

e por conta da nossa ignorancia,
além de crianças machucadas grandes
machucando outras crianças,
em 50 anos,
debaixo de uma nuvem atômica de pudor e culpa,
teremos esquecido o abraço.

mas hei, a melhor maneira de solucionar o problema não é mesmo acabar com a infância?
ah
ah
ah.

Wednesday, May 02, 2007

todas as coisas que acontecem por causa da piscina

Ele compra jóias pelo canal persa da televisão
Sua filha se inscreveu na pré seleção de um reality show pelo segundo ano consecutivo. Ano que vem vai ter que comprar pra ela.
Ano que vem ele queria se divorciar.
Agora não dá.
Sua esposa é viciada em coca light
Ele também suspeita que ela esteja trepando com atendentes de lojinhas 24 horas.
Alguém grita na frente de sua casa, “meg pecadinho, sua loca”.
Ele gostaria que meg pecadinho fosse sua amante, mas quis o destino que ela fosse sua filha.
Não que ele tenha tocado nela alguma vez, não não.
Ele não a merece. Ele só queria.
A parte mais ridícula....
A parte mais ridícula, é saber que existem milhares de vidas como a sua. Milhares de caras como ele, querendo as mesmas coisas que a grande maioria deles também não terá força de vontade o suficiente pra alcançar.
Só coçando o saco.
Aliás, há uma semana, ao invés de só coçar o saco, ele esfrega a mão lá. E naquele espaço entre o saco e o cu. Naquele corredor inútil. Imagina de deixaria alguém lamber lá, nem chegar perto, não importa o quanto digam que pode ser bom. Só ele bota a mão lá. Pegando cheiro. Pra depois espalhar seu cheiro de inutilidade pras mãos dos outros.
Como um cão que já não mija pateticamente tentando demarcar terreno.
Ele está assistindo, mas não prestando atenção, um programa sobre velhos que realizam feitos incríveis aos 80 anos. Tudo o que ele pode pensar é
Que bom
Que ele jamais teve a menor vontade se cuidar, porque de fato, ele não pretende existir aos 80.
Não há fatos extraordinários a vista pra ele.
Quando ele chegar aos 80, a filha vai estar um caco.
Pode ser filha
Pode ser o amor da vida dele
Mas também só vale enquanto os peitos souberem o seu lugar.
E cada cirurgia plástica diminui o valor de naturalidade da peça.

Ah ah ah, é impressionante como reduzimos os outros a pedaços de carne com validade, consumíveis ou não, aos quais teremos a graça de acessar ou não,
altamente perecível ao desejo.
O desejo altamente perecível. Tão perecível que come suas próprias tripas.
Tão perecível que só sobra uma idéia do desejo, nada que anime suas células, muito menos faça cócegas atrás do umbigo.
Mas, a parte mais engraçada no meio de tudo isso, é perceber que você é carne de quinta. E apesar do dinheiro que você tem, ele ainda não é suficiente pra te meter na terceira. Você é só um merda que na verdade deveria fingir pros outros e pra si mesmo que nem pensa nessas coisas, e de preferência que acha isso asqueroso.

A mulher chega em casa vestida de pistache. Ele achava que tinha passado a moda pistache. Desde a escola a mulher está sempre atrasada. Infelizmente nem isso nem todos os cosméticos a mantiveram jovem. O melhor que ela consegue fazer é parecer uma senhora senil agindo como uma criancinha imbecil. Por isso, só podem ser os atendentes de loja 24 horas. Ela não faria melhor do que isso.
Na cozinha, ela prepara um sanduíche com uma fatia de pão, meia de queijo e duas de alface. Muito séria, compenetrada em nada. Com as rugas de quem está sempre se ferindo, por querer, sem querer. Ele entra pra pegar outra cerveja e também porque ela esta lá. Sentia eventualmente alguma necessidade de interação. Nem que fosse uma simples troca de palavras pra garantir que a cidadã que dorme ao seu lado não anda tendo idéias violentas. Talvez ele estivesse enlouquecendo, mas sempre achou importante manter vigilância sobre as vontades da mulher.
Por deus, ela dormia com ele. Ou melhor, ele dormia ao lado dela.
E ele dormia bem. Ele gostava de estar dormindo.
Uma parede inteira da cozinha era feita de tijolos de vidro. É óbvio que só podiam se dar ao luxo de uma parede de vidro porque viviam num condomínio fechado com dobermanns e cerca elétrica. Aquilo tudo sempre lembrava o quanto ele também estava impedido de fugir. Ele odiava a parede de vidro que deixava sol de mais entrar na casa. Era tarde de sábado, como um inútil homem temporariamente liberado das suas obrigações, ele só queria um pouco de insignificância e escuridão.
Perto da janela, vestida de pistache, mordiscando um mini sanduíche, a mulher...a mulher parecia um pássaro radiativo,
Odeia a mulher odeia a mulher
Sem expressão alguma, a olha com uma garrafa na mão
Vendo-a como um pássaro radiativo
E odiando-a por causar aqueles pensamentos esquisitos.
Ela lhe dava vontade de aprender a jogar golfe e um bom álibi pra ter um taco.
Nessas horas, eu me sinto um moleque com raiva e ao mesmo tempo acho difícil de acreditar que já fui criança um dia.
- Hei querida, porque nós continuamos dormindo na mesma cama?
- pelo mesmo motivo que não me impressiona você estar me perguntando isso
E ela não estava impressionada
-pelo mesmo motivo que você ainda me chama de querida. E pelo mesmo motivo que continuaremos dormindo na mesma cama. Porque ambos sabemos bem o que acontece, porque temos dificuldade de mudar os hábitos e porque insistimos em ser cúmplices.
- Isso é bom?
- O que te parece? O que nós dois parecemos?Algo bom?
- Desde quando você fala assim?
- Desde sempre, mas normalmente tenho paciência de maquiar melhor.
- Hmmm. Você já reparou que as minhas mãos cheiram mal nos últimos tempos?
- Comentaram. Por aí. Comentam. Eu ainda não reparei.
- Você não fica triste?
Ela está longe da luz agora. Já não tilinta mais. De repente, parece até que já não há mais sol, nem luz.
- Triste? Porque não percebi que você fede?
- Não. Porque não nos aproximamos mais.
- Ou seja, você me pergunta de estou triste porque você não me dá oportunidade de perceber que fede?
- Talvez você goste do cheiro.
Por algum motivo, se sentiu impelido a enfiar a mão no nariz da mulher.
Ela saltou de lado e segurou com força a sua mão. Com força, toda a força do mundo
mas sem raiva.
- Você tem certeza de que quer que eu saiba a verdade sobre você a essa altura?
Ele sai da cozinha.
Vai ao banheiro e lava as mãos.
Ele volta.
-Ei, você foi gorda quando era adolescente, né? Aposto que passava a tarde inteira comendo porque era esquisita e não tinha amigas.
-Errado.
É, na verdade, ela comia a noite inteira.
-Você sempre foi compreensiva.
- E você sempre sonhou ser casado com a sua filha.
Ele não diz nada. Porque não era uma pergunta. Nem uma situação em que valesse a pena refutar.
- Você sabe querida, acho que ninguém invejaria a nossa vida.
-Fale por você. Eu acordo todos os dias sendo completamente feliz. Absurda e completamente feliz. Rotineiramente. Aliás, hoje é sábado, você podia me levar pra jantar.
Jantar. Sempre jantar. Outro jantar.Jantar é bom. Salão cheio de gente com grampos no rabo, sorrindo.
Amanhã
Ele vai acordar com azia,
Mas é domingo, ele tem o dia inteiro pra matar algum desconhecido.